quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Podemos falar de autismo?

Vou contar uma história, a história palerma de um gelado. Por vezes as boas histórias começam com um gelado de colher, outras vezes, não passam de histórias.
Macaquito tinha uns 4 anos quando comeu o primeiro gelado, aquele que vem num copo de plástico com uma pastilha no fundo, tudo porque numa saída mais prolongada que o esperado, eu não tinha lanche para lhe dar e achei que de todas as porcarias que lhe podiam dar naquela esplanada, um gelado era o mais parecido com um iogurte. Detestou a primeira colher, levei algum tempo a perceber que o problema estava na temperatura do gelado, aqueci-o nas mãos e acabou por comê-lo todo e pedir mais. A partir desse dia passou a pedir um gelado de vez em quando, sempre o mesmo gelado e sempre aquecido com as mãos quase até derreter. Quando descobri que não podia comer nada que tivesse leite, deixou de comer gelados e iogurtes, entre muitas outras coisas, até aparecerem os gelados feitos de fruta e sem leite que habitualmente come num copo com uma colher pois também não pode comer os cones de bolacha, quando come um gelado desses também deixa derreter até estarem a uma temperatura que consiga suportar, isto porque a hipersensibilidade decorrente da doença rara, tem como zonas de maior estímulo, o nariz e a boca.
Este verão estávamos num sítio onde não havia gelatarias e num dia qualquer comemos um gelado numa esplanada e o único gelado que podia comer, eram uns novos vegan que são de pau. Escolheu o de manga e depois chorou copiosamente porque não conseguia comer o gelado como todos nós fazemos, lambendo ou chupando. Pedi um prato e uma colher e dei-lhe o gelado como sempre comeu gelados, à colher.
A semana passada num café pediu, entusiasmado, um gelado daqueles que tinha comido na praia e foi crucificado por quase todas as pessoas presentes porque comia um gelado de pau com um prato e uma colher, deixei-os argumentar sobre os quase doze anos, sobre o facto de todas as pessoas comerem gelado a lamber e sobre o quanto era palerma por não saber comer um gelado e depois expliquei que além do seu autismo, da sua obsessão com rotinas e formas de estar, macaquito não consegue comer gelados frios e que mesmo que conseguisse não há nada que me impeça de comer um prato de sopa com um garfo por muito estúpido que isso possa parecer a todas as pessoas. 
Esta é história de um gelado, podia ser outra das muitas que temos e que envolvem levar pancada por dizer o que lhe vem à cabeça sem qualquer tipo de filtro, ou as de bullying ou de birras que quase ninguém entende (porque falhámos um horário ou itinerário ou outra rotina qualquer) ou a de ontem quando me ligaram da escola porque Macaquito estava com falta de ar e precisava da bomba da asma. Perguntei ao professor se teria havido alguma altercação com algum colega, respondeu-me que sim, parece que outro miúdo lhe chamou camelo e a mim, senhores, também me chamou camelo, como é que o rapaz podia aceitar uma coisa destas! Alertei o professor que macaquito não tem asma (era só o que lhe faltava!!!), que eram nervos, dessem-lhe 10 minutos para se regular e respirar fundo e que o encaminhassem para a aula. 
Isto tudo, noutra criança qualquer, resolvia-se fácil, fácil. Com um miúdo destes, tem de haver amor, resiliência e muita paciência. 




14 comentários:

  1. Existem coisas que não se entendem... o porque tudo mas tudo ser alvo de critica. Quando estava a ler, lembrei-me de comer os meus pernas de pau numa chávena e sabia-me tão bem!

    Sabes o que falta? Formação... e essencialmente... educação!

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    1. E empatia, sobretudo empatia.
      Se as pessoas soubessem o cansaço que por vezes me assola. Não há um dia da minha vida de mãe que seja normal, seria muito mais fácil se as pessoas quando não entendem se imiscuissem de comentar ou agir.

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  2. e é isso tudo que nos vêm ensinar, amor, tolerância, resiliência e paciência.

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  3. Esta é a história das pessoas que não tentam pôr-se no lugar das outras pessoas, das pessoas que julgam sem saber, das pessoas que se acham senhoras e donas da razão... Ainda temos tanto que aprender!

    Que o Macaquito coma os gelados todos que quiser, como quiser!

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    1. Comigo poderá ser sempre o "ET" que isso é o que mais adoro nele ;)

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  4. Há o desconhecimento e há a falta de empatia, de que falas, sim. Esses miúdos são resilientes. mas quem eu tbm admiro com todas as minhas forças são os pais. Sou madrinha de um puto especial e não calculas (ou cslculas) como admiro aquela mãe. Ninguém se lembra do cansaço dela, ninguém facilita. É preciso mais formação, a sociedade tem de se familiarizar com estas realidades.

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    1. A maior parte dos dias levo isto de ânimo leve mas às vezes só queria ter um dia normal, sem uma gestão constante de fragilidades, avalanches de emoções, adaptação a rotinas, enfim... Um dia em que mandasse toda a gente para um certo sítio e pudesse ler um livro em paz :D

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  5. Há muito poucas pessoas que tenham interiorizado aquela velha máxima de que sabemos como nascemos, mas não sabemos como morremos. E sim, também aprendermos a colocarmo-nos na pele do outro, quanta falta isso faz.
    Olha, eu sou uma espécie de senhora bem educada e a cerveja só me sabe bem se bebida pelo gargalo, ainda que o restaurante seja chique. E quase toda a gente leva a mal.

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    1. Ah, não sou só eu. Também só bebo pelo gargalo mas não levo nada a mal nada que as outras pessoas bebam pelo copo :D

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  6. O meu irmão (que faleceu entretanto) tinha Sindrome de Down e Autismo. E realmente, há pessoas em espaços públicos, sem noção, que insistem em olhar, cotovelar-se, comentar... gente triste!

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    1. Por vezes é muita falta de noção, nem sempre é por mal.
      Abraço apertado Raven, um beijinho ♥️

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Dá cá bananinhas!