Vou contar uma história, a história palerma de um gelado. Por vezes as boas histórias começam com um gelado de colher, outras vezes, não passam de histórias.
Macaquito tinha uns 4 anos quando comeu o primeiro gelado, aquele que vem num copo de plástico com uma pastilha no fundo, tudo porque numa saída mais prolongada que o esperado, eu não tinha lanche para lhe dar e achei que de todas as porcarias que lhe podiam dar naquela esplanada, um gelado era o mais parecido com um iogurte. Detestou a primeira colher, levei algum tempo a perceber que o problema estava na temperatura do gelado, aqueci-o nas mãos e acabou por comê-lo todo e pedir mais. A partir desse dia passou a pedir um gelado de vez em quando, sempre o mesmo gelado e sempre aquecido com as mãos quase até derreter. Quando descobri que não podia comer nada que tivesse leite, deixou de comer gelados e iogurtes, entre muitas outras coisas, até aparecerem os gelados feitos de fruta e sem leite que habitualmente come num copo com uma colher pois também não pode comer os cones de bolacha, quando come um gelado desses também deixa derreter até estarem a uma temperatura que consiga suportar, isto porque a hipersensibilidade decorrente da doença rara, tem como zonas de maior estímulo, o nariz e a boca.
Este verão estávamos num sítio onde não havia gelatarias e num dia qualquer comemos um gelado numa esplanada e o único gelado que podia comer, eram uns novos vegan que são de pau. Escolheu o de manga e depois chorou copiosamente porque não conseguia comer o gelado como todos nós fazemos, lambendo ou chupando. Pedi um prato e uma colher e dei-lhe o gelado como sempre comeu gelados, à colher.
A semana passada num café pediu, entusiasmado, um gelado daqueles que tinha comido na praia e foi crucificado por quase todas as pessoas presentes porque comia um gelado de pau com um prato e uma colher, deixei-os argumentar sobre os quase doze anos, sobre o facto de todas as pessoas comerem gelado a lamber e sobre o quanto era palerma por não saber comer um gelado e depois expliquei que além do seu autismo, da sua obsessão com rotinas e formas de estar, macaquito não consegue comer gelados frios e que mesmo que conseguisse não há nada que me impeça de comer um prato de sopa com um garfo por muito estúpido que isso possa parecer a todas as pessoas.
Esta é história de um gelado, podia ser outra das muitas que temos e que envolvem levar pancada por dizer o que lhe vem à cabeça sem qualquer tipo de filtro, ou as de bullying ou de birras que quase ninguém entende (porque falhámos um horário ou itinerário ou outra rotina qualquer) ou a de ontem quando me ligaram da escola porque Macaquito estava com falta de ar e precisava da bomba da asma. Perguntei ao professor se teria havido alguma altercação com algum colega, respondeu-me que sim, parece que outro miúdo lhe chamou camelo e a mim, senhores, também me chamou camelo, como é que o rapaz podia aceitar uma coisa destas! Alertei o professor que macaquito não tem asma (era só o que lhe faltava!!!), que eram nervos, dessem-lhe 10 minutos para se regular e respirar fundo e que o encaminhassem para a aula.
Isto tudo, noutra criança qualquer, resolvia-se fácil, fácil. Com um miúdo destes, tem de haver amor, resiliência e muita paciência.